O Pecador e o Demônio

Pecador: Como vai bom rapaz?
Demônio: De barriga cheia.
E você, valoroso varão?
Pecador: Precisando de um jejum.
Vocês parecem touros às vezes
Quando não estão parados, descansando
Correm, e correm corpulentamente, fazendo tremer a terra.
Demônio: E você, faz do discernimento o seu tutor?
Pecador: Bom senhor, como bem sabes a resposta...
Minguada é a força de que ainda se desacultura
De uma terra tão profanada
E que dos alimentos escolhe qualquer coisa;
Discernimento... Discernimento...
Um burro ou um jumento, discernimento...
Falo de mim mesmo, um porco comendo torresmo.
Demônio: Arguto,
Porém, ainda que em meio à tempestade, no centro do furacão
E até mesmo no torvelinho da confusão,
Convém forjar uma temperança
Que traga equilíbrio.
Pecador: É, mas alguém precisar ensinar a um mendigo,
Que já sabe o que precisa ter,
A rir da própria miséria, do próprio estado miserável.
Aqui vai o pedido do pedinte:
Atenda ou aja como um burguês em requinte,
Já chega de gerar reflexões em quem me circunda
Quero fazê-los rir de segunda a segunda
Já que não sei amá-los, a nenhum deles.
Demônio: Mas o amor ao próximo é um milagre impossível nesta terra, eu juro
Nesse caso, os mendigos são corpos, e nossos monarcas e heróis assombrosos são só...
As sombras desses mendigos.
Pecador: Quem jura mente! Mente, mente, mente! Como a mentira é incongruente!
Já vi tantas pessoas que geraram sorrisos e risadas
E de semblantes tristes escaparam gargalhadas
Se isso não for amor, não sei mais o que seria
E não será nesse caso em que minha tristeza refletiria.
Demônio: Isso não quer dizer nada, pois o melancólico
Acha graça genuína em tudo
O verdadeiro melancólico não é cônscio de seu estado
Não enxerga sua real situação.
Pecador: Mas não importa nada ver-se com a própria visão.
Aprendi com vocês todos a agir com severidade
Qual seria o problema em rir com tranquilidade?
Vendo os outros rindo, genuinamente?
Demônio: Eu perdi nesses últimos tempos, não sei por quê,
Todo o contentamento,
Larguei o hábito dos exercícios, e ando com o espírito tão pesaroso que,
Essa bela estrutura, a terra, me parece um estéril palco de bons atores.
Pecador: É por que foste privado de vários sabores?
Demônio: O homem não me dá prazer.
E eu disse que não sei por quê.
Pecador: Mas não importa mesmo o motivo,
O que importa mesmo é fazer alguém sentir-se vivo.
Demônio: Eu não sirvo para ser um ator comum
Preciso de melhores meios.
Pecador: Se tu não podes ser, muito menos homem nenhum
E esses não serão teus devaneios.
Mas qual é o problema de fingir em um fingimento
Por um momento só, ter um só contentamento?
Demônio: Mas eu finjo; é, a propósito, o que eu faço de melhor
Mesmo sofrendo tudo ou não sofrendo nada, recebo
Os afagos e os golpes da sorte
Com igual gratidão.
Pecador: Então faça sorrir o pobre e o nobre coração.
Demônio: Arre,
Basta.
Pecador: Pensei que gostasse de Shakespeare.
Mas chega de entrar nesses jogos tão hostis
Preciso viver uma vida mais feliz.
(Aperta a mão incorpórea do espírito).
Demônios: Minha visão requisita paisagem mais agradável aos olhos.
Este pálido promontório já está a me causar tédio
Vou entrar por aquela porta, boa noite.
Pecador: Mas eu nunca te disse que seria teu remédio.
Adeus, amigo dileto
Das confidências de Deus que revela o que está secreto.

Árias

As névoas turvam tua visão dispersa,
Se embotam na fumaça de seus sonhos.
Mas balançando o ar, eu semeei ideias
Colhendo frutos de esperanças breves.

O silêncio, suave, permanecia
E via a ti, que concebendo as formas,
Era um fruto que amadurecia.
A melodia que exigia as cordas,

E delegavam-me uma canção.
Calma, saltavas a tua sobrancelha,
Se transmutando numa exclamação.

O aço os meus dedos não cortava.
"As árias rasgam o nosso coração":
Era o que nosso coração cantava...
Alguém te puxou pro céu, eu vi
Então me disses tu: "e agora?"
De tanto "e daí" em "e daí"
Que muito ouvi de ti, senhora.

A Virgem que te deu a mão.
A ti, que nunca foi de pensar
Que a mão é feita pra se dar.

2/05/2020

A fome e o jejum.

A cada dia que passa sinto mais fome. Quanto mais fome eu sinto, mais percebo que vou me tornando um ser animalizado. Quem não participa de Missas não pode imaginar plenamente o que estou falando. Mas todos sabem o que são animais famintos.

Uma hora haverá - já há - banquetes que substituirão o Banquete; fiéis, incrédulos ou satanistas começarão a considerar o que deve ser devorado ou não, para saciar os desejos e necessidades, mundanos ou dos eremitérios, contraditórios ou conflitantes, que emergirão das almas anestesiadas, já que não há, nessa gigantesca necrópole, a não ser um pequeno número singrado pela Honra do Nosso Redentor, quem mencione a Ausência dos Sacrifícios por um minuto sequer...

Então os atos antropofágicos, as vozes famintas e as alucinações da fome serão os costumes dos homens animalescos...

Entretanto, a fome sempre virilizou o mais frágil e feminino dos seres. Guia a caça e o caçador compenetrado, e seu olhar vidrado e seco à sua presa, acompanha seu inimigo, que enquanto estiver vivo, continuará sendo seu adversário. O jejum dos cristãos se prolonga... Até se tornar um Mistério dentro em breve revelado.

"Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar."

1 São Pedro, 5:8

A fome de Satanás e de todos os condenados eternamente, lançados fora, para sempre, da Presença da Graça, foi o que nos fez chegar até esse ponto.

Mas o ponto é que Satanás se esqueceu que quando retirados os bens das almas famintas pelo Bem, a Ira, essa moça que implora e se ajoelha diante a Justiça, o põe novamente em sua eterna narrativa destinada aos espíritos dos abismos, que buscam, como todos os demônios que conversei, esquecer de suas próprias narrativas, com as dispersões e os alimentos que o esquecimento proporciona, até contemplarem a Verdade, os confrontando com um furor aniquilador.

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!"

São Mateus 5:6

E seus tormentos constantes, os calafrios, o choro e ranger de dentes, despertados nessas lembranças, da memória de que haverá sempre os saciados, trará a luz aos que vivem as trevas, essas criaturas impotentes que jamais retornarão à suas naturezas primordiais...

Jamais.

Símbolos perdidos

Da colina vi o triste descampado
Amarelecido; e o decaído vão,
Dava aspecto bruto ao doirado
Que há no ouro e no mel e no leão.

Não foi o sol também embalsamado
De cor substanciada em realeza
Que transformou, a queimar o árido
Nessa profana indigência e torpeza.

Nem o crisol que havia purificado
Aquelas almas cheias de beleza
Denominadas "bem-aventurados";

Mas o ladrão que sabota a riqueza
Despovoou todo o significado
Desses símbolos em nossa agudeza.